31/03/08

coisas de mães

image by Konrad Ciok


com as mãos ____ aquelas mãos ____ vazias sempre

faz com a Terra um acordo ____ de mães ____ desesperadas

quando a chuva cair____ aqui ou no deserto

no inferno que seja____ irá buscá-la

com as mãos ____ as mãos em concha ____ ciosa. protectora

a mãe das mãos vazias ____ encherá de água

fértil. transparente ____ as mãos de mãe

e entregará aos rios____ todas as gotas____ nada entornará

para que encham o mar

o imenso mar ____ que em ondas ____ lhe aceitará ____em troca


a infindável mágoa ____carregada ____nas mãos

vazias ____como a morte.


30/03/08

no canto. conto-me.

Blue Nude by Picasso


no canto.

no canto conto os dias tristes e os outros. conto-os em número.

conto-os a mim. no canto.

é o canto de não cantar. este meu canto.

é o canto de fazer as contas com a vida antes que a barca venha.

feitas as contas, posso vestir-me de veludo encarnado para a viagem.


mas há ainda tantas palavras a usar que nem entendo. antes de partir

tristeza. por exemplo. é uma delas.

a própria palavra. pesa. pesa como carregar um morto aos ombros

deve pesar.

estar triste é estar nua e só. num canto. contando a própria vida

a ninguém.


nem a fome é mais triste. a fome traz a morte mais depressa. alivia o penar.

estar só. num canto, a contar a si mesma o próprio conto. o por cantar

é estar na barca já

sem o saber. só por não ter ouvido. na água. as pás remar.

28/03/08

hieroglifos

image by Brad Carlile


passadas muitas vidas vieram os estrangeiros visitar-me

leram os hieroglifos que deixei _____ nas pedras

pesquisaram _____ violaram verdades _____

com a pequena mentira como engodo _____ nunca lidas

fizeram_____ longa _____ história de mim

de ti também _____ a história ficou feita


__ **__


acabada a leitura das pedras _____ partiram _____ muito sábios

sem ter sequer roçado

conhecer

o mistério _____ do saber _____ dos nossos lábios.

popular-mente

at Langhans Galerie


o bom de escrever agora

sobretudo se é em verso

é ninguém ler o que escreves

ou então ler o reverso.

26/03/08

... nas tuas costas

image by Dr. Feng Jiang


aos olhos da imaginação _________ dessa _________ a sobrevivente

desesperada amiga que sobrou _________ à normal _________ debandada

das aves sem asas e de arribação _________ velozes _________ que enxameiam

o viver descuidado até a sorte _________ virar _________ nos esquecer o todo



a esse olhar moldo uma montanha _________ de vértebras nuas _________ e tacteio-a

tacteio-te com dedos de pianista _________ experiente _________ componho (te)

melodias vibrantes _________ vendavais _________ arrepios de pele e carne viva



imaginado o corpo sobra a paz _________ pausa. cansaço _________ de quem sentiu

o entranhado desejo satisfeito _________ à tua revelia _________ e renovado

ao ver nas tuas costas a montanha _________ solo erguido _________ vertebrada

onde o meu rio feito de camuflado amor


já corre e se despenha


24/03/08

tu berço

micul mare by iacobmishu


o livro de bolso que é a minha vida

bem que cabe na tua

e é sem saber que lês

a minha essência.



___________



tão poucos se deram conta de que sou


também palavra que quer uma terra

onde cair e ser fecunda


palavra alma em primavera aberta



____________


no colo do livro que és e eu não li mais que um terço


embalo a vida. vivo sonhos



de amor a ritmo de berço.


22/03/08

sopro vida

Of Knives and Paper by kevissimo


sopra meu vento ---- amor ---- ao meu ouvido


cerca-me o pescoço duma ---- serpente ---- amante


sibilante


que me faça tremer e ---- oscilar ---- perder no



espaço


que medeia entre o ---- odor ---- de ti no meu


pescoço

e o beijo que desejo



e tu ---- inventarás ---- num sopro criativo



sopra. amor. a palavra. ao meu ouvido


e em ---- enrolo ---- de cobra que volteia


deixa depois de ---- verdadeiro ---- amor



a minha boca cheia.



21/03/08

o sonho

image by Scraps


ontem tinha pensado escrever sobre amor. o meu amor possível. inventado.

mas a cabeça doía mais que o pensamento e fui dormir. trazia na memória um olhar que não parecera ver-me. nem sequer sabia que o trazia. as coisas que se carregam para casa sem saber!

pior, pior foi o sonho depois.

- no emprego, alguém com poder para isso e muito mais, avisava-me, olhando-me como quem não me vê, que já não precisavam de mim. assim a frio e pronto. rápido como os sonhos são. segurei uma tampa de caixa de papelão. coloquei por cima as minhas plantas e saí a informar não me lembro quem. ou lembrarei?

voltei ao local de trabalho que por vinte anos fora o meu. ia saber de mais. do como. do porquê. mas a secretária já fora trocada. esperavam ainda quem a ia ocupar e... não me viam. ninguém sequer olhava na minha direcção.-

nunca me senti tão número como neste sonho. um número apagado. um número para engrossar, e ainda assim pouco, uma futura estatística qualquer.

a minha cadela foi acordar-me. entendi que era sonho. era sonho mas até quando o era?

assim deixei o texto de amor inventado e parti na direcção da barca que o sonho parece anunciar.

não a avisto mas sei que não demora. é mais de indiderença que de doença que se morre. sei o que digo. antes o não soubesse.

não tenho pena de partir. não gosto é de esperar.

hoje não vejo telejornais. falam de desemprego. não sei é como apagar da memória aquele olhar.

18/03/08

o homem que veio do passado

photo by Aline Smithson

o homem chegou. trazia menos sonhos no olhar grisalho. sorria. sabe sorrir e é límpido ainda.

pessoa que enfrentou e ouviu muitas marés baterem nas amuradas da vida. com a sensação de que lhe cabia a ele orientar o povo para fora do afogamento. também foi esse o seu destino. cumpriu-o.

o homem que veio do passado trouxe no olhar a nostalgia de acreditar. que muitos temos.

Memory of Water by ericbb

trouxe também memórias do Mar onde nadaste, meu amor de sempre a sempre. coisas pouco sabidas. coisas de que me orgulho. sabia de ti e da tua maldição de teres nascido português.

amei naquela hora o homem quase estranho, não fora ele um nome doce de ouvir na tua boca. amei-o como se o tivesses enviado.

e não terás? que sabemos nós do para lá disto a não ser que "anda tudo ligado"*?

quero que o homem volte. que me conte de ti antes de mim. também é para isso que servem os amigos - para nos manter vivos depois do tal adeus.




* in Square Tolstoi de Nuno Bragança.

17/03/08

devia sentir-velha

River meets the Sea by Cara Weston


não devia ser assim. já não devia.

devia ser eu uma calma lagoa

onde se espelha uma árvore antes de secar

tinha de ser mais velha no sentir

de ter matado as células de vibrar

para ao passar por ti ou ao ouvir

a voz que me sacode como vime

não estremecer em convulsões de rio

numa ânsia sem nome de se unir ao mar



devia mas não quero ou não sei ou não posso

e o meu corpo, se dependesse dele

cairia no teu como pedra num poço

numa entrega bem para lá da pele!

16/03/08

seara-terra

photo by Snemann


penso. o fim da Terra não vai ser o deserto.

vai ser o avassalador beijo do mar

a cobri-la toda. a ondear. em volúpia de orgasmo



seria bom de ver a pleno tempo

tanto como o é na primavera a ondulação

de seara verde ao vento.


15/03/08

mentira. a primeira.

isto vai ser mesmo um diário. disse ontem ou coisa parecida. que mentira!

eu não sou de diários. nunca fui. tive vários. davam-me isso para eu poder escrever com organização. mas eu não sou assim. a minha vida é um caos bem semelhante ao mundo aonde nasci. organizar o quê?


foto by Kevin Houlihan

escrevo hoje pelo acaso estranho de ter despertado de um sonho contigo. saí dele apressada mal tu entraste em cena.

envelheceste. às vezes penso que toda a gente está como a conheci, excepto eu. que só em mim o tempo deixou marcas. não. envelhecemos todos. corremos todos, sem vontade, para o fim. desde nascidos.

mas fiquei a pensar porquê, ao fim de tantos anos, me invadias a noite (já manhã). mais no porquê de preferir acordar de ti, que foste um dos meus três amores.


Copyright Niram Art Magazine

foi rápido o saber. revisitou-me a mágoa de um verão em que descobri que te sonhara. que não eras mais que uma invenção minha. vontade de que fosses parecido, pelo menos, ao meu primeiro amor que se partira. desempenhaste tão bem esse papel.

até ao dia em que enfrentei o horror numa só hora. vindo de ti. que eu procurara. pela primeira vez aterrada na probabildade (imaginada. em pavor.) de voltar a ser mãe.

ouvi-te em silêncio. quando terminaste e eu saí, perdera vinte anos de afecto. vinte anos de ilusão. envelhecera cem.

e foi quase sempre assim a minha vida. quantos anos terei eu agora?

o teu são paulo que os conte quando chegar o tempo. eu com este ordenado e estes impostos, só sei fazer contas de diminuir.

antes de rir não ria

photo by Desiree Dolron


hoje sei rir. tudo se aprende. para mim o mais difícil foi o riso

adodescente sempre. séria como adolescente tem de ser

mal sabia eu do riso além do esgar no rosto

mas conseguido o esgar. entreabertos lábios

a boca era já toda fogo posto e a gargalhada ecoava no universo

não sei se é bem verdade mas soa bem em verso e eu não sou poeta

aliás. antes de envelhecer, em coisas de escrever era discreta

dizia só o que sentia sem ninguém entender

e o demais que se aprende na cartilha de quem abusa de ler

escritores de fama


(ahahahahahahahahah

lembrei agora uma senhora fina que dizia de um escritor consagrado

que o melhor dele era ser bom na cama...)


há-de haver um dia em que não lembre nada

por isso ainda escrevo. nem prosa nem poesia. isto.

coisa que se fosse eu a ter de ler me dava até azia

mas que é que querem? façam como eu - não leiam.

não desperdicem tempo. agora é um diário

o que me vier à cabeça atiro aqui e não é nada contra quem me lê

é só para não esquecer - não tenho secretária - a memória está gasta

e eu não quero deixar nada por dizer


ainda anda para aí muita gente infeliz a julgar-se esquecida

e eu não saio da vida a deixar que me julguem

mal agradecida.